Um das coisas que mais me dão medo é que o meu talento – ou o que escolhi para fazer da vida – não me sustente.

Mesmo quando trabalhava fazendo desenhos no computador, em jornais, me perguntava: Se uma guerra ou uma crise econômica acontecer, serei um dos primeiros a não ser aproveitado num mundo onde os talentos manuais são mais procurados.

Na reconstrução de uma nação, padeiros, pedreiros, marceneiros, serralheiros, costureiros, e pintores, além de diversas outras profissões manuais, serão mais úteis do que personal trainers, ilustradores, “profissional da internet”, etc.

Então, desde já, digo que nenhuma profissão artesanal devia ser tratada com desprezo, ou pior: como adequada a uma classe.

E é assim que são tratadas. Estou juntando aqui algumas informações que soltei em pequenos desabafos no Facebook.

Eu e a galera do Social Zero no estande da Logos Livraria.

Eu e a galera do Social Zero no estande da Logos Livraria.

O primeiro já foi transformado até em post, durante o lançamento do meu álbum em quadrinhos em Vitória/ES, no começo do ano. Mesmo estando vestido diferente dos demais vendedores (boa parte deles negros), sentado à frente dos meus livros e de ter sido anunciado pelo evento que eu estaria ali assinando meus trabalhos, três pessoas se dirigiram a mim, me perguntando preço de livros… dos outros. Acharam que eu era vendedor da loja.

“Mas você está achando ruim ter sido comparado a um vendedor de loja?”

Sim e não. Me senti chateado porque as pessoas que me perguntavam ignoravam o fato de eu não estar vestido com os funcionários da LIVRARIA LOGOS, estar de gravata, blusa social de manga longa sentado à uma mesa com meus trabalhos e, por simples associação, acharam que eu estava ali trabalhando vendendo livros. Bem, eu estava sim, mas os meus…

Em um outro episódio, deja vu: Feira Capixaba de Literatura, coisa de cinco meses depois. Lá estava eu, novamente num estande da Livraria Logos, desta vez com uma blusa roxa, assinando meus livros. Uma garota, branca, com seus 20 anos, me perguntou o preço de um livro que ela carregava do outro lado do estande.

– Eu não sei, querida… Estou aqui apenas assinando meus livros.

– Eu achei que você era vendedor!

– Digamos que eu “estou” vendedor – respondi. – Estou vendendo meus livros. Mas o que faz você pensar que eu sou vendedor da loja? Estou vestido de roxo, numa mesa com meus trabalhos, assinando autógrafos…

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Eu na Feira Capixaba: meu “crachá” me transformou em funcionário.

– É o seu crachá. – Ela se referia à credencial que eu usava,  assim como as dos vendedores. Assim como também as senhoras da Academia Feminina Espirito-santense de Letras, que assinavam seus livros no mesmo horário. A única similaridade que eu compartilhava apenas com os vendedores era a minha cor.

Podemos dizer que esses “enganos” partiram do povo, acostumado a classe baixa, em sua maioria negros e mestiços, na área de prestação de serviços braçais ou área de vendas. Uma vez condicionado a isso, é difícil desassociar-se dessa imagem.

Até porque é uma imagem real. Temos muito mais enfermeiros(as) negros(as) do que médicos(as) negros(as).

O cargo de auxiliar de serviços gerais, geralmente é ocupado por negros.

Já reparam no gari da sua rua? É negro? As duas senhoras que trabalham na minha são.

Os caras que recolhem meu lixo? Negros!

O serviço braçal, manual, a base da cadeia produtiva, ainda é negra, tal como no começo de tudo.

Então, é natural o povo achar que, a sua cor dá uma “pista” do seu lugar na sociedade e assim, lhe fazer a pergunta:

– Sabe me dizer quanto que tá isso?

Para não dizer que é um problema local (até agora dei exemplos do Espírito Santo), eu fui convidado para um evento sobre quadrinhos na Saraiva do Botafogo Praia Shopping e, enquanto esperava minha fala, fui olhar a sessão de quadrinhos. Uma senhora me questionou o preço de um livro.

— Minha senhora, eu não sei, mas quando eu quero saber, eu levo naquele leitorzinho ali, ó? – e apontei para o lado.

A senhora agradeceu e, assim que voltei aos quadrinhos, uma pessoa me abordou, perguntando se eu havia achado algo.

Quando ele olhou para a minha cara de quem não sabia de nada, ele confirmou que não era eu o funcionário que ele tinha pedido algo.

Nesse dia, eu estava com a blusa preta, tal como o pessoal de lá. Culpado, né? Vai vestido de funcionário, o pessoal acredita…

 

Para ilustrar ainda mais o caso e não acharem que eu estou julgando com o coração, eu estive na Saraiva de Niterói, onde vi uma propaganda grande na vitrine da loja, voltada aos universitários. A mensagem dizia que lá na Saraiva tinham tudo o que eles precisavam.

Só que na imagem traziam três brancos (um ruivo, mas ainda sim…). Fui ao site e percebi que lá falava também de volta as aulas. Lá sim tinha um moreno. Peguei a imagem do site e fiz meu protesto.

saraiva

Peguei pesado?

É a minha interpretação sobre algo que vi no site da empresa, não? Aliás, eu cheguei a questionar para a vendedora da loja, se ela não achava absurdo o fato de não ter um negro entre os universitários da propaganda na entrada da loja. Ela, assim como os outros dois vendedores próximos a ela, também eram negros. Ela me olhou, deve ter me achado meio louco.

– Eu não sei nada disso. É coisa do marketing – respondeu. E não quis mais conversa.

Mas esses assuntos são de meses atrás. O que me fez trazê-los à tona? Duas coisas. Uma declaração da Taís Araújo numa entrevista para Rosana Jatobá, que reproduzo a pergunta e resposta em questão:

Rosana Jatobá – O Mandela ficou mundialmente conhecido por lutar contra o Apartheid, que era o regime de segregação racial na África do Sul. Você ao longo da sua carreira em algum momento você se sentiu marginalizada, vítima de algum tipo de preconceito?

Taís Araújo – O tempo inteiro, né. A gente vive no Brasil.O Brasil é um país preconceituoso, eu sofro preconceito da hora que eu acordo até a hora que eu vou dormir. O preconceito não tá só em me tratar mal numa loja, tá em entrar em uma loja, por exemplo, olhar a minha volta e não ter ninguém igual a mim sentado comendo no restaurante. As pessoas que estão ali são iguais a mim estão ali me servindo só. Mas elas não tem a possibilidade de estarem ali sentadas. Não foi dada a elas a possibilidade de estudo, esse é o preconceito.

É assim que vejo também. A diferença é que não sou conhecido como a Taís e de vez em quando sou visto como funcionário do lugar. É um tipo de preconceito, como o que presenciei ontem, no dia em que terminei um curso (na verdade, um laboratório de roteiro) com o roteirista Celso Taddei e o diretor Márcio Trigo.

Olha esse cabelo e barba!

Olha esse cabelo e barba!

Eu estava no Humaitá, próxima à Botafogo (cariocas, me corrijam!), e peguei um táxi para chegar a um evento. Graças a dois meses de trabalho num ritmo frenético, eu não consegui passar no meu barbeiro de confiança para cortar meu cabelo e fazer a barba (coisa que faço desde quando descobri a irritação da pele após fazer a barba).

Quando entrei no taxi, disse ao taxista que ia fazer uma corrida curta para o Shopping Botafogo, e a partir daí começou um bate-papo sobre corridas curtas.

Eu falei que estava vindo de uma confraternização com os amigos e o taxista então me perguntou se eu trabalhava na Riourbe.

A Riourbe é uma empresa de pública de capital fechado da Prefeitura do Rio. Sua especialidade? Gerenciamento de obras públicas de infra-estrutura, urbanização, reformas, construções, conservação e manutenção preventiva de prédios públicos.

Já sacou, né?

Baseado simplesmente no fato de eu estar numa área nobre do Rio de Janeiro, o taxista pensou que eu era um trabalhador de obras.

Ou você quer acreditar que ele olhou para a minha cara e pensou:

– Esse cara é um engenheiro!

“Mas então você não quer ser confundido com um peão de obra, isso quer dizer que você é preconceituoso, se acha bom demais para ser um peão de obra!”

Não é assim. Eu certamente ganho menos que um (bom) pedreiro ou um marceneiro. Eu escolhi minha profissão e ainda novo me disseram que eu não conseguiria. Muitos dos meus amigos trabalharam em obras – assim como eu – por falta de opção.

Mesmo sabendo que todos os prestadores de serviços gerais – pretos e brancos – são os que movem este país, são eles que mantém o mundo rodando, essas pessoas são tratadas com desrespeito.

E quando uma pessoa olha para mim e supõe, pela minha cor, que estou ali para servi-la, sem ter o cuidado de saber se eu estou sendo pago para isso, é algo que me deixa profundamente chateado.