ódio

Hoje voltei à infância. Não à boa infância, mas àquela odiosa, a que não me deixa esquecê-la em casos assim.

Moro numa área hostil, o que é relativamente comum no Rio de Janeiro. Se não te ameaçam com armas impondo a segurança, outros ameaçam com as mesmas armas impondo poder, e ainda temos uma terceira via, que são as pessoas abastadas que te olham com ameaça, desejando não ter que conviver com uma pessoa de classe diferente.

Acho que a maior parte da população já viveu alguma dessas ameaças. Eu já vivi e, hoje, ela teve uma carga especial, porque também me senti como o pessoal da terceira via.

Fui fazer compras num mercado local quando, na avenida principal, cinco garotos, em média com seus 15 anos, passaram por mim, do outro lado da pista.

Eles falaram algo, parecia ter sido para mim, chamando a minha atenção. Carros passando, barulho peculiar e qualquer mensagem que eles tivessem me passado se perdeu.

Quando olhei para o grupo novamente, desta vez consegui ouvir:

– Gordo escroto!

Parecia tão surreal que, em plano século XXI, adolescentes indo para escola, se achassem no direito de esculachar alguém, e eu ignorei. Mas como eu já havia olhado, um deles achou interessante dizer:

– Tá olhando o quê? – Sem parar, o grupo foi andando do outro lado.

Eles estavam longe era uma autopista, carros passando. Cinco negros, porte físico compatível. Cinco negros de boné para trás. Cinco negros fazendo um bonde. Meu primeiro sentimento foi um ódio de mim mesmo, por achar que eu merecia aquele comentário. Afinal, sou gordo!

Depois veio a vontade era peitar, chamar para a briga, vomitar um bocado de verdades, estatísticas da probabilidade de um dos cinco ser bem-sucedido em alguma coisa honesta, quis eles mortos, pela ilusória demonstração de poder daqueles garotos.

Aí, pensei que estarei em amanhã numa palestra sobre literatura infantil, falando sobre quadrinhos e livros infantis pensados para uso na escola.

Pensei que, quando eu estava na idade daqueles rapazes, eu buscava agir como a voz consciente em meio aos que adoravam fazer alguma coisa errada. A educação que recebi, junto com os quadrinhos que eu lia, cheios de senso de moral, de fazer o certo porque é certo, moldaram meu caráter.

Eu sou humano, cometia erros de julgamentos, mas sempre tentei fazer coisas da qual me orgulharia depois.

Não me orgulhei do ódio que tive daqueles garotos. E pensei no quanto as mulheres sofrem com os assédios diários. Sofri num momento o que muitas pessoas sofrem diariamente.

E quando cheguei ao supermercado, ao escolher logo a fila que não andava, vi diversas pessoas atrás de mim reclamando do caixa, de sua lentidão e do sistema que não lia os códigos de barras, do cartão que não passava, e enfim mudaram de fila.

A caixa não estava no seu melhor dia, sofrendo com o clima pesado da fila, e a minha cara também não era a melhor.

Eu estava pronto para despejar minha frustração de não ter peitado – e provavelmente apanhar – daqueles rapazes numa na pessoa mais indefesa que encontrei.

Engoli meu ódio, esperei muita gente que escolheu as filas laterais andarem. Eu segurei a onda. Ninguém ali percebeu meu gesto maravilhoso.

Só viam “um otário que estava na frente deles e que foi atendido depois”.

lupita

Eu preciso dizer umas palavrinhas sobre o que tem saído na rede esses dias, até porque uma coisa está batendo na outra e fica parecendo que é tudo uma coisa só. E é.

Lupita Nyong’o é considerada a mulher mais bonita do ano segundo a revista “People”. O dançarino Douglas DG leva um tiro, enquanto fugia de um tiroteio da PM.

E tem a surpreendente resposta de Daniel Alves ao ato de racismo do torcedor do Villareal.

Uma mulher negra é considerada bonita e encontrei comentários na rede como “Não é a mais bonita, mas eu traçava”. Outro respondeu “Prefiro virar padre”.

Não existe uma resposta certa para “quem é a mulher mais bonita do mundo?”, ou do ano, do século. A pergunta mais justa a fazer seria “precisamos eleger uma mulher como a mais bonita do ano?”

A pergunta foi feita, uma negra ganhou pelo conjunto de qualidades, além da relevância em seu papel como mulher negra no cinema. Aplaudem uns, reclamam outros. O mundo não está um pouco mais negro, apenas tirou um pouco da poeira da vitrine que nos esconde.

Num artigo do André Forastieri, ele questionou na parte de comentários a falta de jornalistas negros nas redações. Eu respondi que existem brancos mais preparados para entrar nas faculdades de comunicação por virem de escolas particulares ou cursinhos. Um indivíduo entrou na conversa dizendo que os negros não correm atrás, que gastam seus recursos com celulares, tênis e roupas.

Coincidentemente eu havia assistido um trecho de um documentário da GNT sobre a prostituição em Salvador. Eu vi a história de duas mulheres negras.

Uma veio de Feira de Santana, aos 14 anos e se prostitui desde então. Sonha reencontrar um gringo que viveu com ela por cinco meses.

A outra tem 35 se prostitui desde os 12. Diz que prefere os brancos a negros, porque negros querem machucar na hora “do amor”. Os brancos são mais amorosos.

Ao ser perguntava se preferia casar com um branco ou com um negro, ela disse:

– Com branco, né? Para “limpar” um pouco a família.

Esse pensamento não é exclusivo da prostituta.

Ninguém quer viver numa condição que a desfavorece. Minha família sempre me dizia “você não é negro, é moreninho”. E um padeiro, branco, me disse uma vez, num episódio desabonador: “preto é tudo igual, mesmo…”

 

O caso do DG é complicado. Dizem que ele andava com traficantes, freqüentava festas, outros dizem que ele tinha passagem pela polícia…
Mesmo que isso tudo fosse verdade, não seria menos triste a morte de um cara que desenvolve um trabalho artístico.

Deixa eu te contar: TODO MUNDO, senão MUITA GENTE que mora nas grandes cidades conhecem um traficante, um usuário, um lugar onde acontecem coisas ilícitas, mesmo que de vista. Em todos os lugares que morei vi amigos virarem usuários e trabalhar com o tráfico, assim como vi pessoas trabalharem em diversas áreas.

Ninguém deixa de conversar com uma pessoa pela sua opção, ainda mais num ambiente complexo como são comunidades, onde todo mundo se conhece. As pessoas respeitam suas opções e tentam tocar a sua vida como podem.

É uma questão de escolher, mas como convencer um cara que ganha uma grana R$ 500,00, Mil Reais por semana, a ganhar R$ 800,00 por mês, agüentando patrão te chamar neguim, ou te fazer a atração do local?

Como convencer uma garota do morro a estudar e trabalhar num banco ganhando R$ 1.750,00, segundo a Fenabran, sendo que ela pode ser mulher de um cara que ganha R$ uns 5.000,00 na favela? Ou

A vida de “otário” que levamos não seduz, da pessoa que vê o político roubando e se iludindo, dizendo que a culpa é deste ou de outro partido, quando a culpa é de todos os envolvidos.

Vi por muito tempo jornalistas chorando nos corredores, outros emendando um cigarro no outro por pressão. Quem morre primeiro, o jornalista ou o bandido? Certamente o bandido, mas ninguém vive bem.

Sobre o episódio do Daniel Silva: Eu nunca fui chamado, com todas as letras, de macaco. Isso não quer dizer que eu já não tenha sido tratado como um macaco. Mas o que me deixa mais chateado é que eu já agi como um. Diversas vezes.

Principalmente quando eu estava num lugar onde eu me sentia deslocado, ou devido a tanta coisa que enfiam em sua cabeça a vida inteira, você as vezes cede e acredita, mesmo que por um segundo, que não merece estar ali. Você acaba tentando ser interessante, falar do que faz, faz ao vivo o que pedem.

Um dia uma jornalista me pediu uma ilustração para a matéria dela. Como a história era interessante, a ilustração rendeu, a ponto da repórter dizer:

– Nossa, que bonito! Vou te dar um bombom!

Eu a olhei e disse:

– Obrigado, mas sabe que sou pago para faze isso, né? Sou um funcionário, como você…

Preto e gordo, dá a impressão que é pago com chocolate mesmo, né? Me senti um daqueles macaquinhos, fazendo macaquices em troca de alimento.

O outro episódio foi num evento de quadrinhos, onde saí para beber com uns amigos e conhecidos de internet. Quando o cara viu um negro, gordo, com barba e boné, falou:

– Ed Motta!

Ele não era nem o vigésimo quinto cara a fazer a brincadeira, mas para me enturmar, fiz uma vocalização do cantor. Banquei o mico de circo.

Foi o bastante para, cada vez olhava para mim naquela noite, ele falasse comigo:

– Faz o Ed Motta!

E eu, como um macaquinho, fiz mais umas duas vezes. Ele me pediu novamente e eu o olhei:

– Sério que vai ser isso a noite inteira? Já deu, né?

Não fiquei mais tão divertido. Ainda fiquei com raiva de mim por não ter feito aquilo antes.

Em muitos casos, o negro não consegue chegar a outras classes sem experiências traumáticas. Seja o preconceito durante o processo, o passado que lhe martela as faltas de recursos, ou o simples fato do exótico chamar mais atenção do que o talento.

Os negros que ascendem camadas podem ser: revanchistas sociais, preconceituosos contra brancos ou negros, ou ser a sensação do ambiente social e profissional. Ganha um apelido, grita, conta causos, dá show, faz a alegria da galera. Eu me encaixo na última categoria e continuo bancando o bobo alegre de vez em quando. Macaco, nunca mais.